No dia do casamento de Priscilla e Binho, uma garoa chata caía sobre São Paulo. Embora estivesse ansiosa na noite anterior, a noiva acordou faltando apenas uma hora para a cerimônia, arrumou-se às pressas e chegou atrasada ao cartório de Santana, na zona norte, para sofrimento do noivo que, empacotado em roupas sociais e visivelmente nervoso, checava o relógio de pulso a cada instante.
Eram 9h17 de sábado quando Priscilla apareceu toda de branco, levantando a barra do vestido para não molhar. Com o cabelo ornado por uma coroa de noiva, entrou na recepção segurando um buquê com flores de plástico. Chamava atenção por ser a única vestida dessa forma no cartório. “Olha só que linda”, elogiou uma convidada.
Entre os presentes, o matrimônio era tratado como uma vitória. Namorados há 21 anos e noivos há dois, Priscilla e Binho têm deficiência intelectual, cujas causas nunca receberam diagnóstico. Ela tem 40 anos e aprendeu a ler e a escrever. Ele, com 51, nem isso. Embora trabalhe como empacotador em um supermercado, não consegue administrar o próprio dinheiro.
Foto: Daniel Teixeira/ESTADAO
O casal enfrentou uma série de dificuldades e recorreu à ajuda de advogado para formalizar a união civil. Tia e responsável legal de Binho, a diarista Maria José Araújo, de 68 anos, tentou acalmá-lo antes de encarar o juiz de casamento. “Vocês lutaram muito para estar aqui hoje, não vai desistir agora, né?”.
Na sala de cerimônia, decorada por um lustre de cristal e um painel de bolhas d’água, comum em restaurantes orientais, Binho se embananou para repetir à risca os votos de casamento e foi advertido por tentar pôr a aliança no dedo médio da noiva, em vez do anelar.
Nada que o deixasse constrangido. “Estou realizando um sonho”, disse após assinar seu nome na certidão: Robinson Roberto Padrini. Na linha abaixo, foi a primeira vez que Priscilla Faustina de Oliveira também usou o sobrenome Padrini.
A solenidade durou pouco mais de cinco minutos: antes das 10 horas, Binho e Priscilla já eram marido e mulher. “Saibam que são diferentes e pensam diferente. Vão acertar e errar por pensarem diferentes”, discursou o juiz de casamento Marcelo Lopes Martins para um público de seis pessoas, sem contar noivos e escrevente. Houve duas salvas de palmas.
Familiares de Priscilla organizaram um churrasco para comemorar e enfeitaram as mesas com balões em formato de coração. “Foi uma conquista não só para eles, mas para todos que estão nessa luta”, disse Nilo Oliveira, de 54 anos, o padrinho de casamento da irmã.
Foto: Daniel Teixeira/ESTADAO
Priscilla e Binho já moram juntos há cerca de um ano, sob os cuidados de Maria José. Sem pintura externa e repleta de rachaduras, a casa fica no Imirim, na zona norte, e é alvo de um processo de usucapião. “Se a gente for despejado, não sei o que vai ser”, afirmou a idosa.
Alcoólatra, os pais de Binho morreram cedo e ele foi criado desde a infância por Maria José, a quem chama de mãe. “É claro que eu queria alguém. Quando minha mãe for embora, quem vai cuidar de mim?”, disse o recém-casado, que agora faz planos de ter filhos com Priscilla.
O casal se conheceu na escola, no fim dos anos 1990. A história de amor, Binho começa contando assim: “Sem querer, eu peguei na mão dela…”. E termina com um beijo correspondido no ponto de ônibus. “Ela foi minha primeira namorada e eu fui o primeiro namorado dela.”
Na véspera do casamento, a noiva decidiu dormir fora. “Ele não podia me ver arrumada, dá azar”, justificou. Havia histórico para acreditar em má sorte: o episódio mais emblemático aconteceu logo após a festa de noivado, ao tentarem marcar uma data para a união.
Primeiro, um tabelionato justificou que o domicílio do casal não fazia parte da sua circunscrição e recusou o pedido. Depois, em Santana, ouviram que, por causa da deficiência, só agendariam o matrimônio com autorização judicial. Priscilla saiu correndo de lá e foi chorar no meio da rua.
Segundo a Lei de Inclusão à Pessoa com Deficiência, de 2015, mesmo quem é interditado judicialmente pode casar. “Nós fizemos um dossiê mostrando que feria a legislação”, disse o advogado Lucas Nowill de Azevedo, que abraçou o caso. “O cartório entendeu e reverteu a decisão.”
Consultora da Apae de São Paulo, órgão que prestou apoio jurídico ao casal, a advogada Stella Reicher disse que casos semelhantes são comuns, mesmo com a Lei em vigor. “O processo do Robinson e da Priscilla representa um momento mágico, porque fortalece essa conquista e cria precedente.”
Para Binho, a restrição não fazia nenhum sentido. “Eu gostaria de ter uma união igual a todos. Normal. Não é porque tenho deficiência que eu sou diferente.”